Os dois papas que serão canonizados a 27 de Abril tiveram de enfrentar críticas a algumas das suas opções mais importantes: João XXIII por ter convocado o concílio, João Paulo II por viajar. Preocupava-os o lugar do catolicismo num mundo em profunda transformação. Humanidade, profetismo e polémicas de dois papas que são declarados santos do nosso tempo.
A anedota mais conhecida talvez seja a de quando o Papa João XXIII decidiu mostrar o que queria com o Concílio Vaticano II: cansado das críticas de várias pessoas por ter convocado a assembleia conciliar, e estando um dia rodeado de alguns desses críticos, saiu do trono papal e abeirou-se de uma janela, abrindo-a de par em par. «Esta é a minha resposta sobre o concílio: ar fresco», disse, com um ar entre o «jubiloso e o indignado», como conta Constantino Benito-Plaza (Juan XXIII – 200 Anédoctas, ed. Sígueme).
Neste livro não se regista a segunda parte da história, mas conta-se que a abertura da janela terá tirado alguns papéis do sítio. E um dos interlocutores diria: «Mas vem desarrumar-nos as coisas.» Sem o saber, e tomando a história como verdadeira, esse interlocutor acertou em cheio: a janela que João XXIII abriu trouxe ar puro à Igreja, mas deixou muitos – e o próprio catolicismo – à procura do papel concreto no novo mundo que despontava.
Sinais dos tempos
A convocação do concílio, que trouxe a Igreja para a terra e o catolicismo para o séculoxx, culminava dinâmicas de renovação iniciadas décadas antes: entre outras, a renovação litúrgica e catequética, a reaproximação à Bíblia, a modernização pastoral, a renovação da teologia, a descoberta do papel dos leigos, o catolicismo social e a Acção Católica.
Lendo os sinais dos tempos – expressão evangélica que João XXIII recuperou, para dizer que a Igreja deve entender a realidade –, o Papa Roncalli queria uma Igreja que fizesse menos condenações e, sobretudo, propusesse uma mensagem renovada do Evangelho à sociedade. Por isso mesmo, chamou teólogos marginalizados no tempo de Pio XII (Henri de Lubac, Yves Congar e outros), para ajudar na preparação e nas quatro sessões de debates, entre 1962 e 1965.
Optimista e bondoso, Angelo Roncalli foi eleito papa a 28 de Outubro de 1958, um mês antes de completar 77 anos. E não se limitou ao desempenho «de transição», como muitos vaticinavam, antes marcando indelevelmente a história do catolicismo.
Nascido em Sotto il Monte (Bérgamo, Itália) em 25 de Novembro de 1881, Angelo Giuseppe Roncalli foi ordenado padre em 1904 e nomeado bispo em 1925. Nesse mesmo ano, foi enviado como visitador apostólico para a Bulgária e, nove anos depois, para Istambul, como delegado pontifício para a Turquia e a Grécia.
Lançar pontes
Apesar de ainda se entender na época que «fora da Igreja [Católica] não há salvação», ele estabeleceu muitas pontes com responsáveis ortodoxos ou muçulmanos, maioritários nesses países. No Diário da Alma (ed. Paulus) anotava, quando estava na Turquia: «Eu amo os Turcos, aprecio as qualidades naturais deste povo.»
Na Bulgária, assistiu a um sínodo ortodoxo, o que lhe valeu críticas vindas de Roma. «Os ortodoxos acreditam no mesmo Deus que nós, têm os mesmos sacramentos, o seu sacerdócio é igual ao nosso […] Não percebo porque havia de ignorá-los. Se o Evangelho me impõe o amor aos próprios inimigos, não havia eu de mostrar o meu amor para com os irmãos ortodoxos?», respondeu, numa carta ao amigo Mons. Gustavo Testa, citada por Mario Sgarbossa (João XXIII – A Sabedoria do Coração, ed. Paulinas). Quatro décadas depois, esses vínculos darão frutos, quando convida protestantes e ortodoxos para observadores do concílio, mais uma vez contra algumas vozes da Cúria.
Nomeado núncio em Paris, entre 1944 e 1953, vive a experiência de um país onde o catolicismo, ainda predominante, está em rápida erosão, mas no qual a Igreja procura novas formas de presença, com a renovação da Acção Católica, os padres-operários, anouvelle théologie…
Nos primeiros meses em Paris, Roncalli ajuda prisioneiros de guerra e negoceia a demissão de bispos considerados colaboracionistas com o nazismo. Os seus encontros com a nova geração de políticos franceses, entre os quais Robert Schumann, um dos «pais fundadores» da futura Comunidade Europeia, dão-lhe também a perspectiva da nova realidade política nascente.
É em Paris que quebra o gelo com o embaixador soviético, ao dizer-lhe: «Temos pelo menos uma coisa em comum: somos ambos gordos…» Como patriarca de Veneza depois de 1953, torna-se amigo do sindaco comunista. Quando completa 80 anos, o líder soviético, Nikita Khrustchev, telefona-lhe a felicitá-lo, recorda Patricia Treece (João XXIII – Um Pai Para Todos, ed. Texto). Em Março de 1963, a filha de Khrustchev, Rada, e o seu marido, Alexis, pedem para ser recebidos pelo papa. Rada dirá depois que «foi talvez a mais forte experiência emocional» que alguma vez sentira.
Grandes encíclicas
A procura de pontes com a sociedade torna-se evidente nas grandes encíclicas que publica e nas quais, pela primeira vez na História, um papa se dirige «a todos os homens de boa vontade». Muitos responsáveis políticos saúdam positivamente os textos da Mater et magistra, sobre a questão social (1961) e da Pacem in terris, sobre o problema da paz (1963). Nesta encíclica, publicada num dos apogeus da Guerra Fria, com Kennedy na presidência dos Estados Unidos e a crise dos mísseis de Cuba, João XXIII propõe o fim do armamento atómico e sugere uma paz baseada na confiança mútua e não no equilíbrio armado.
O aggiornamento desejado por João XXIII concretiza-se ainda com o facto de, pela primeira vez desde Pio IX e da unificação italiana, cem anos antes, um papa voltar a sair dos muros do Vaticano, visitando paróquias, prisões e hospitais. No Natal de 1958, apenas dois meses depois de ser eleito, foi a dois hospitais pediátricos e a uma prisão, onde disse aos que ali cumpriam penas: «Sou Giuseppe, vosso irmão e aqui estamos na casa do Pai.»
Peregrino do mundo
Uma viagem de comboio a Assis, em 1962, como peregrino de São Francisco, foi outro dos sinais da abertura de João XXIII e o primeiro passo para as viagens internacionais de Paulo VI (Jerusalém, ONU, Índia ou Fátima) e João Paulo II. Este último, com 104 viagens a 129 países, em quase 27 anos de pontificado – um dos mais longos da História –, teve mesmo no seu papel de peregrino universal uma das marcas fortes do pontificado. E não ficaram de fora situações difíceis em termos sociais ou para a presença da Igreja (Médio Oriente, Polónia e Leste europeu, Cuba, Bósnia, Marrocos, Sudão, Turquia, América Latina, Indonésia, Coreia do Sul, entre outras…)
Tal como João XXIII com o concílio, também João Paulo II foi criticado pelas viagens que começou a fazer. De tal modo que, em Junho de 1980, menos de dois anos após a eleição e depois de já ter visitado 14 países, o próprio justificou a opção, num discurso à Cúria na véspera de sair para o Brasil: «O papa viaja para anunciar o evangelho, para “confirmar os seus irmãos” na fé, para consolidar a Igreja, para encontrar o homem.»
Eleito em 1978 com 58 anos, João Paulo II tinha grandes capacidades de comunicador, um dos segredos para o grande êxito das viagens. Quando morreu, o presidente italiano, Carlo Ciampi, disse na televisão: «A minha mulher e eu conservaremos para sempre, no coração, a sua voz, os seus olhos luminosos e agudos, que [nos] penetram profundamente, o seu olhar carregado de afecto que [nos] abraçava ainda antes de abrir os braços.»
Muitos episódios das viagens resumem vários aspectos do seu pontificado: o papado abre-se ao mundo e às comunidades locais, mas acentua a personalização do poder dentro da Igreja; a experiência da fé é por vezes reduzida às multidões e confunde-se, em outros casos, com uma quase idolatria do papa; milhões aplaudem-no, mas nem sempre estão de acordo com a mensagem; a sua ética social é do mais avançado no pensamento contemporâneo, mas a moral individual fecha qualquer abertura; o papa inaugura um espírito novo no diálogo interconfessional e inter-religioso (encontros de Assis, visita a Jerusalém e ao Muro das Lamentações, idas à Sinagoga de Roma ou à Mesquita dos Omíadas, na Síria), mas assina um documento que diz que é na Igreja Católica que subsiste «a única Igreja de Cristo». Apesar disso, sugere na encíclica Ut unum sint (Que todos sejam um) que deve reflectir-se o papel do bispo de Roma enquanto ministério de unidade entre os cristãos.
Não tenham medo!
O seu pontificado pretende afirmar a originalidade cristã no mundo contemporâneo. Na primeira mensagem à multidão após a sua eleição, ele diz: «Não tenham medo! Abri as vossas portas a Cristo! Ao seu poder salvador, abri as fronteiras dos Estados, os sistemas económicos e políticos, os imensos domínios da cultura, da civilização, do desenvolvimento.»
Foi essa coragem que o levou à Polónia natal, contribuindo para a queda do comunismo no Leste europeu. Mas, no âmbito político, preocupavam-no também as graves injustiças do mundo – «o Sul pobre julgará o Norte rico», afirma, no Canadá, em 1984 –, os direitos sociais e familiares dos trabalhadores, a dívida externa do Terceiro Mundo, a fome em África, a corrida ao armamento… E opõe-se duramente à invasão do Iraque, dizendo que a guerra é sempre «uma derrota da humanidade».
Uma das suas ideias é compatibilizar a democracia e a justiça social, objectivo a que consagrou três das suas 14 encíclicas: Laborem exercens (1981), sobre o trabalho humano;Sollicitudo rei socialis (1987) sobre a preocupação social da Igreja; e Centesimus annus(1991), sobre a nova realidade após o fim do comunismo do Leste europeu. Apesar dessa preocupação, não vê com bons olhos a colaboração de muitos teólogos da libertação com a esquerda política latino-americana.
João Paulo II enaltece o papel da mulher na Igreja e na sociedade, mas declara encerrada «para sempre» a possibilidade de as mulheres serem ordenadas; e escreve que o caso Galileu simboliza a «pretensa recusa pela Igreja do progresso científico ou do obscurantismo dogmático oposto à livre pesquisa da verdade», mas ele próprio diz que os teólogos devem pesquisar apenas o que o magistério permite. Apesar de escrever na encíclica Fides et ratio (Fé e razão) que «se a fé não pensa, ela não é nada».
Reconhecer as falhas
Outra das suas marcas fortes é o registo penitencial das falhas da Igreja: durante vários anos, João Paulo II prepara a comunidade eclesial para o grande pedido de perdão que fará solenemente em Março de 2000, no Vaticano. Durante o seu pontificado, beatifica 1340 pessoas, canoniza 483 santos, publica um novo Código de Direito Canónico (1983), cuja revisão se iniciara com João XXIII, e um Catecismo da Igreja Católica (1992).
Tal como João XXIII, João Paulo II tinha um grande sentido de humor. A 25 de Março de 2000, em Nazaré, na Terra Santa, um homem oferece-lhe um tijolo como sendo da casa de Abraão. João Paulo II agradece e sorri: «E eu que julgava que Abraão tinha vivido numa tenda…»
O Papa João XXIII morreu a 3 de Junho de 1963. A 3 de Setembro de 2000, foi proclamado beato por João Paulo II, que morreu a 2 de Abril de 2005 e foi beatificado por Bento XVI a 1 de Maio de 2011. João XXIII e João Paulo II serão agora canonizados pelo Papa Francisco a 27 de Abril.
António Marujo, jornalista
[Fonte | www.alem-mar.org]