“Porque devemos chamar-nos cristãos”, da Editorial Frente e Verso, apresenta a «íntima relação do pensamento da tradição cristã com a liberal como sendo de crucial importância para o futuro político e cultural da Europa», escreveu Bento XVI, atual papa emérito, em 2009, no prefácio à edição alemã.

Porque Devemos Chamar-nos Cristãos

O autor, Marcello Pera, «senador da República italiana que exerceu durante um período legislativo o cargo de Presidente do Senado, assume-se como um liberal (“laico”) que precisamente por isso se insere dentro da tradição cristã e, enquanto filósofo e político, assume a tarefa especial de realizar o encontro entre o pensamento cristão (católico) e o liberal», apontava então o papa alemão.

«O título da obra deve ser compreendido a partir desta ideia: sem o enraizamento nos elementos essenciais da herança cristã, o liberalismo perece por si próprio. A democracia liberal, na sua base filosófica, pressupõe esta herança e sustenta-se nela.

O mesmo se aplica às descrições da crise ética, nas quais Pera revela como uma ética liberal está em íntima relação com a doutrina cristã do Bem e ambas podem e devem ser amplamente ligadas na disputa em favor do Homem», explicava Bento XVI.

Joseph Ratzinger assina o prefácio: «o livro de Pera, com a sua sóbria racionalidade, com a sua abrangente informação filosófica e com a força da sua argumentação» é, «de grande importância» para o tempo «que a Europa e o Mundo atravessam».

Eis a introdução à obra:

Quando a nossa casa está a arder
Introdução

Porque devemos chamar-nos cristãos? Existem, à primeira vista, miríades de razões que no-lo impedem pelo facto de, na atualidade, a religião estar em tribunal, acusada por numerosas testemunhas e condenada por muitos juízes. Não faltam, efetivamente, historiadores que a consideram um vestígio cultural de uma época remota, filósofos que a atiram para as primitivas formas de conhecimento e reflexão, cientistas que a põem de lado por acharem que a religião corresponde a uma fase já ultrapassada na evolução da espécie humana, juristas que se lhe opõem enquanto obstáculo à convivência pacífica em sociedade. Quanto aos políticos, ora pregam o sincretismo de todas as religiões (o termo usado é «diálogo»), ora simplesmente não acreditam em nada. A palavra de ordem em qualquer esfera importante de influência é «somos todos pós-religiosos». Os que professem uma crença religiosa estão autorizados a cultivarem-na em privado, se quiserem. Podem exteriorizar em casa a sua sensibilidade e os sentimentos e exibir os símbolos que entenderem, mas não lhes é permitido professar a sua fé na escola, na universidade, no parlamento, na rua ou na comunicação social. Longe vai o tempo em que os nossos antepassados gregos invocavam os deuses na ágora. Hoje em dia, os nossos espaços públicos têm de ser tão assépticos como os blocos operatórios dos hospitais, isentos de contaminação por qualquer «conceção sobre o bem». Os Estados não podem depender de credos religiosos; os políticos têm de professar uma postura neutra em relação aos valores religiosos; a coesão nas sociedades tem de ser alcançada sem nenhuma referência a vínculos religiosos ou éticos.

Entre as religiões, o Cristianismo é, hoje, a mais combatida, seja por razões de ordem geral, seja por razões específicas. A razão de ordem geral prende-se com o facto de o Cristianismo ter sido o núcleo religioso do Ocidente num tempo em que este se considerava como um grande veículo da civilização e seu guardião. Se o Ocidente atual continuar a bater com a mão no peito pela sua alegada culpa em relação ao passado, e se não se considerar melhor que outras civilizações, então também o Cristianismo acabará por esbanjar a função especial que lhe incumbe. A razão de ordem específica é a alegação de que o Cristianismo e as suas Igrejas, de modo particular a Igreja Católica Romana, impediram continuamente o progresso científico, tecnológico, político e social. Pois, não é verdade que o Cristianismo continua a rejeitar os principais dogmas da modernidade e, ainda mais, os da pós-modernidade?

Por serem opiniões amplamente disseminadas nos dias de hoje entre a elite intelectual e política do Ocidente, elas acabam por ser aceites como verdade inegável. Felizmente, vai havendo muitas pessoas comuns que já começaram a sentir o cheiro a fumo e a pôr em causa a linha dominante de pensamento. Eu sou uma dessas pessoas. Tenho para mim que o Ocidente de hoje está a passar por uma profunda crise moral e espiritual, causada por uma perda da fé no seu próprio valor e exacerbada pela apostasia do Cristianismo a alastrar no seio da atual cultura ocidental.

Considero-me um liberal, mas impõem-se a esse respeito certas clarificações.

Quando atravessamos o Atlântico, caímos na conta do inquietante fenómeno conhecido entre os filósofos como «diferença de significado»*: certas palavras não têm a mesma conotação ou denotação em ambos os lados do oceano. Os termos «liberalismo» e «liberal» têm significados diferentes, se não mesmo completamente opostos, nos dois lados do oceano. Tudo indica que se trata de uma questão do foro da história e não do da linguística. Na Europa, os liberais são a favor da limitação dos poderes governamentais, da autonomia da sociedade civil e da não interferência do Estado no mercado. Promovem instituições intermediárias e, acima de tudo, prezam a liberdade individual. Na América, os liberais da atualidade ou são contra todas essas liberdades ou são a favor da sua restrição e de que sejam arregimentadas para «o bem comum». Na Europa, onde o Estado é padre padrone (pai e dono), os liberais olham-no como adversário.Na América, onde o Estado era tradicionalmente considerado como um mal necessário, é frequente na atualidade os liberais olharem-no como aliado. A nível político, os liberais pendem para a direita na Europa e para a esquerda na América. O termo europeu equivalente ao americano «liberal» é «socialista», ao passo que o equivalente americano para o termo europeu «liberal» é «conservador».

Dantes, tanto europeus como americanos empregavam as mesmas expressões sem recearem ser mal entendidos. Tinham como ponto de partida a mesma premissa filosófica, a saber, a doutrina segundo a qual o ser humano é detentor de direitos, antes e independentemente de pertencer a uma comunidade política, nação ou Estado. Filósofos europeus como Locke e Kant exprimiam-se exatamente da mesma maneira que Thomas Jefferson e John Adams: o ser humano veio ao mundo «dotado» de direitos inalienáveis.

Dotado por quem? Ninguém duvidava do seguinte: foi de Deus que o ser humano os recebeu. De qual Deus? Também aqui ninguém hesitava: do Deus cristão, ou, mais precisamente, do Deus judaico-cristão, pois foi o Deus judaico-cristão quem criou o homem à sua imagem e foi o Deus cristão que encarnou e padeceu o sofrimento da condição humana. Esta ação batismal é o alicerce histórico e conceptual do liberalismo. Histórico, digo eu, porquanto a batalha intelectual e política do liberalismo contra as velhas hierarquias sociais e os despotismos – incluindo a aliança do trono com o altar – se travava e vencia com base na adoção de uma teologia política cristã. conceptual, digo eu, porque essa teologia política proporciona, de forma explícita ou implícita, as melhores ferramentas para se justificar a dignidade humana e, em consequência disso, o conceito de direitos humanos.

Tal é o meu quadro filosófico de referência. Interessam-me mais as questões intelectuais e culturais do que os problemas políticos correntes. Quando trago estes últimos à discussão, faço-o porque são suscetíveis de iluminar aqueles. A minha perspetiva geral, a mesma que aqui trago a debate, é a de que, se retirarmos dos direitos humanos os alicerces cristãos, não só a doutrina liberal acabará por colapsar, como também a civilização ocidental há de com ela cair. Seria catastrófico, embora não inédito. A Europa já colapsou num passado recente, quando de cristã passou a pagã e materialista. Não faltaram nessa altura grandes autores liberais a reconhecer que a precipitação da Europa no inferno fora causada e promovida pela rejeição da religião e da ética cristãs.

Estava a Segunda Guerra Mundial a eclodir, quando Karl Popper escreveu o seguinte: «a nossa civilização ocidental deve o seu racionalismo, a sua fé na unidade racional do homem que vive na sociedade aberta, e em especial o seu horizonte científico à antiga crença socrática e cristã na fraternidade de todos os homens». Quando a guerra ia a meio e parecia que as hordas nazis estavam à beira de arrasar a nossa civilização ocidental, o filósofo italiano Benedetto Croce escreveu um vigoroso e influente ensaio em que explicava «porque não podemos não nos chamar cristãos». Finalmente, com a guerra já vencida, outro grande autor liberal, Friedrich von Hayek, afirmou estar «convencido de que, sem se colmatar a brecha existente entre as verdadeiras convicções liberais e as religiosas, não se pode esperar um ressurgimento das forças liberais». Note-se que estes autores não eram nem fiéis cristãos nem homens de fé em sentido estrito. E repare-se também que eles não disseram o que o não liberal Martin Heidegger iria mais tarde afirmar: «só um deus nos pode salvar»4. O que eles sustentavam era que o Cristianismo (o nosso Deus) deu forma ao Ocidente e que um retorno ao Cristianismo ainda era capaz de o salvar.

Hoje, no plano político, os liberais triunfaram em quase tudo. O Ocidente tem constituições liberais, instituições liberais, economias liberais e sistemas de educação liberais. Encontramo-nos, no entanto, tão longe do «fim da história», que a mesma brecha entre liberalismo e Cristianismo que abalou a nossa civilização em gerações passadas apresenta-se-nos agora sob uma nova forma. Não sob formas violentas como as do nazismo ou do comunismo, mas sob a forma do laicismo liberal. Para o destino da Europa e do Ocidente, esta ideologia, longe de ser menos perigosa, é bem mais insidiosa. Ela apresenta-se, não com o rosto brutal da violência, mas com o sorriso sedutor da cultura. Através das suas palavras, o laicismo liberal prega a liberdade, a tolerância e a democracia; naquilo que faz, porém, ataca precisamente aquela religião cristã que impede que a liberdade degenere em libertinagem, a tolerância em indiferença, a democracia em anarquia.

É o que se passa na Europa, de modo especial. Será diferente na América? Tal como os liberais europeus da velha escola, eu sempre olhei a experiência americana, fundada no mito da «cidade sobre a colina» ou da «nação sob Deus»*, como o melhor antídoto contra as bazófias filosóficas e políticas dos europeus. A América significou, também, um horizonte de referência e um escudo protetor: Jefferson, Adams, Lincoln e vários outros heróis americanos, contra Rousseau, Hegel, Marx e muitos outros feiticeiros europeus.

Quando hoje visito a América, acho impossíveis, infelizmente, as conclusões otimistas a que Tocqueville chegou quando escreveu A Democracia na América. Por exemplo, acho que deixou de ser verdade o seguinte: «em França [isto é, na Europa] vi quase sempre o espírito da religião e o espírito da liberdade orientados em sentidos diametralmente opostos entre si; na América, verifiquei que eles estão intimamente unidos e que são ambos reinantes no mesmo país». Não há dúvida de que ainda existem diferenças significativas entre a Europa e a América, e que a América continua a ser um pilar de civilização. Temo, contudo, a exportação da Europa para a América, tal como receio que o Ocidente inteiro esteja em vias de se transformar numa grande Europa secularizada – isto é, um Ocidente ainda rico e com poder, mas cada vez mais árido e sem o alento de sentir que tem uma missão moral a cumprir.

Além de liberal, considero-me também laico [secular]. Aqui, impõe-se de novo uma clarificação, pois trata-se de mais um caso importante de diferença de significado. O significado atual de «laico» é bastante diferente do de outrora.

A laicidade tradicional tinha consciência, tal como o liberalismo clássico, de ser tributária da teologia cristã quanto à sua origem e fundamentos, pois fora o Cristianismo a inventar, ainda muito antes de a pôr em prática, a divisão entre César e Deus, entre o trono e o altar, entre a Cidade do Homem e a Cidade de Deus. Não obstante a sua intransigente defesa do «muro de separação», esta laicidade não hesitou em empregar a linguagem de Thomas Jefferson: «Podem-se considerar seguras as liberdades de uma nação se removermos a sua única base firme, uma convicção no espírito do povo de que essas liberdades são dom de Deus? Que não podem ser violadas sem suscitar a sua ira?»6. Nem hesitou, também, em usar a linguagem de John Adams: «A religião e a virtude são os únicos alicerces, não apenas do republicanismo e de qualquer governo livre, como também da felicidade social em todos os governos e em qualquer tipo de composição das sociedades humanas». Nem deixou de usar a linguagem afim de Locke, Kant, Tocqueville e muitos outros. Tal é a laicidade que colhe a minha aprovação. Uma laicidade que se opõe à teocracia, à submissão do Estado às hierarquias eclesiásticas, à interferência das Igrejas em decisões democráticas. Não se opõe à religião, nem acha que o Cristianismo é um conto de fadas destinado a ignaros.

O laicismo atual é diferente. Considera a religião um obstáculo à coexistência, à ciência, à tecnologia, ao progresso e ao bem-estar humano. Na fórmula de Richard Rorty, «em sua forma ideal, a cultura liberal seria totalmente esclarecida e secular. Seria aquela em que não subsistisse mais nenhum vestígio de divindade»8. Este «ideal» acarreta riscos sérios que já encontrámos em primeira mão – enquanto a laicidade tradicional deu origem a uma sociedade aberta (especialmente na América), o laicismo atual, mau grado as suas melhores intenções, está a reduzir os nossos Estados a arenas de conflito religioso (especialmente na Europa). O laicismo não está a produzir uma convivência mais pacífica nas nossas sociedades; muito pelo contrário.

Tomemos o modo como o laicismo confronta o fundamentalismo islâmico. Se o Ocidente ainda não encontrou solução para o problema é porque se sente mais culpado com a ideia de «exportar religião» do que com o uso da força. Os que entendem que não têm nenhuma posição especial a defender e que apenas há que proteger interesses, esses, nem sequer percebem os motivos antilaicistas dos fundamentalistas ou o seu horror à nossa aversão pela religião. Ou, então, tomemos a maneira como os liberais laicistas enfrentam o desafio de integrar cidadãos muçulmanos em sociedades ocidentais. Se a Europa está longe de encontrar solução também para esse problema é porque deixou de acreditar nos seus valores de base e não está disposta a exigir fidelidade para com eles. Os arautos da relatividade dos valores renunciaram à sua identidade. A verdade amarga é que o Ocidente receia o Islão porque receia a religião, e em primeiro lugar a sua própria religião.

O título deste livro tem parecenças com o título do já citado ensaio de Benedetto Croce, «Porque não podemos não nos chamar cristãos». A seu tempo irei explicar as razões filosóficas que levaram Croce a escolher uma fórmula redutora para o seu título e quais os motivos por que as não posso aceitar. Há entretanto um ponto que preciso de clarificar desde já: com o termo «cristão» pretendo significar «judaico–cristão». A ideia fulcral é a de que, do ponto de vista tanto do Judaísmo como do Cristianismo, o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus. Em minha opinião, é esta a fonte religiosa dos conceitos de pessoa e de dignidade humana, o fundamento da noção liberal de que o ser humano tem  primazia em face da sociedade e do Estado e a base para a doutrina dos direitos naturais, fundamentais e individuais. Não foi por acaso que a Europa nazi, ao tornar-se anticristã, se tornou também antissemita. O facto de, ao longo dos séculos, o Cristianismo, e em particular o catolicismo, ter sido várias vezes antissemita não pode esconder o facto de ambas as crenças serem, ou poderem ser consideradas, irmãs gémeas no tocante aos alicerces conceptuais do liberalismo.

Cada um dos três capítulos deste livro contém uma resposta ao problema formulado no título.

No primeiro capítulo, indicarei as razões filosóficas, culturais e políticas por que devemos chamar-nos cristãos. Em síntese: devemos chamar-nos cristãos se quisermos manter as nossas liberdades e preservar a nossa civilização. Vou pôr em causa a «equação laicista» segundo a qual o termo «liberal» é equivalente a «não cristão» ou a «anticristão». Herdada do Iluminismo e da Revolução Francesa, esta equação continua pesadamente pendurada, qual mó, à volta do nosso pescoço. Quando expuser os pais filosóficos do liberalismo, mostrarei também os nexos conceptuais e as «parecenças de família» entre o liberalismo e o Cristianismo.

No segundo capítulo, usarei a Europa como «case study» negativo. Se, como afirmou Jefferson, as nossas liberdades deverão ter, ou deveriam ser percebidas como tendo, um alicerce religioso que garanta a coesão do país, então a Europa laicista de hoje, na medida em que rejeita tal alicerce, nunca poderá garantir a sua união política. Aliás, não existem substitutos eficazes de um alicerce religioso ou ético. Conforme procurarei demonstrar, o «patriotismo constitucional» de Habermas (tal como o liberalismo «não metafísico» de Rawls) só poderão constituir fatores
de unificação e coesão política se anteriormente se houver estabelecido uma base pré-política. Se essa base não existir, ou se for rejeitada, qualquer esforço por edificar a nação europeia ou um superestado europeu está condenado ao fracasso. O facto é que, ao contrário dos Americanos, os Europeus são incapazes de adotar uma constituição que inicie com as palavras «Nós, o povo», porquanto «o povo» tem de existir enquanto comunidade moral e espiritual antes de essa constituição ser concebida e exigida. Enquanto comunidade espiritual e moral, contudo, «o povo» só pode existir se primeiro reconhecer que os direitos e liberdades fundamentais que o congregam, longe de serem concessões inscritas num documento jurídico, são antes, para referirmos uma vez mais as palavras de Jefferson, dom de Deus, ou resultado dos nossos esforços por nos tornarmos dignos de tal dom. Esse reconhecimento é precisamente o que não está a acontecer na Europa.

No terceiro capítulo, examinarei a derrapagem dos nossos Estados liberais. O laicismo, o cientismo, o relativismo, o multiculturalismo estão a provocar um declínio moral. A civilização liberal surgiu para defender as liberdades negativas do ser humano. Mal despontaram as liberdades positivas do cidadão, tudo começou a mudar. O Estado liberal começou por ser democrático, tornou-se em seguida paternalista e, por fim, entrou na fase totalitária da ditadura da maioria com a tirania de autoridades absolutas. Não há hoje aspeto algum da vida, desde o nascimento até à morte, que não tenha sido tocado pela legislação e, principalmente, por veredictos de juízes ou de supremos tribunais, ou por decisões de instituições supranacionais. A esfera moral – outrora confiada à sabedoria da família, da paróquia e da comunidade local, e cuidadosamente preservada de ingerências por parte da esfera política – encontra-se agora sujeita à proliferação de leis e regulamentos. Em consequência disso, a ética foi expropriada pelo Estado, e como chega sempre um momento em que os expropriadores são também eles expropriados, os Estados democráticos vão-se agora dando conta de que a sua autoridade para decidir foi transferida para grupos de poder e de interesse e para as burocracias. Se a ética vier a ser esvaziada de toda a verdade, como querem laicistas e relativistas, o bem e o mal passarão a ser determinados pelo voto parlamentar. Ou pior.

Este livro é um dos muitos a surgir do 11 de setembro. Naquele dia, mais do que fixar-me n’«eles», dei comigo a centrar-me em «nós», na nossa civilização, nos seus alicerces, na sua história, no seu valor e também nos seus erros, mas acima de tudo nas razões por que devemos apreciá-la e defendê-la. Por isso mesmo me sinto devedor a inúmeros indivíduos que não conheço pessoalmente e cujas vozes se foram começando a ouvir para além da gaiola em que a ortodoxia reinante tenta acantoná-las. Sou particularmente devedor a Bento XVI, que, além de Papa da Igreja Católica, é também um grande teólogo e académico, um homem de diálogo e, conquanto contido por feitio, uma pessoa determinada. As palavras são impotentes para lhe expressar a
minha gratidão pessoal e intelectual.

Escrever este livro significou satisfazer uma necessidade urgente em mim. A resposta veio, em parte, da minha experiência política; mas essa não podia ficar completa sem o apelo de Bento XVI àquilo que ele, na esteira de Toynbee, designa por «minorias criativas»9. A circunstância excecional de o Papa ter querido ler este livro quando ainda se encontrava em forma manuscrita, bem como a circunstância ainda mais excecional de lhe haver escrito um prefácio transcendem enormemente a minha dimensão e o mérito do meu esforço. Tais circunstâncias significam a existência de problemas graves no que ao destino do Cristianismo e da nossa civilização diz respeito; significam, também, que compete-nos a todos encarar esses problemas com toda a seriedade.

Por último, e não menos importante, cumpre-me deixar um aviso. Este livro foi escrito para aquele vasto público com paciência suficiente para abordar problemas difíceis e melindrosos, e também para os académicos com humildade suficiente para olharem pela janela, em vez de espreitarem apenas para a mesa de trabalho dos seus pares. Peço aos meus leitores menos habilitados que não percam a paciência para comigo quando tratar de questões técnicas, e peço desculpa aos meus colegas académicos quando, ao tratar alguns desses assuntos, eu nem sempre use as refinadas ferramentas de análise que seria de esperar no exercício da profissão de filósofo.

Peço aos meus leitores, não que aceitem as minhas soluções como as únicas dignas de apreço, mas que reflitam nos problemas aqui discutidos. Não importa se se é liberal, crente, cristão, europeu ou americano. O que conta é se estamos, ou não, dispostos a debater os problemas. Entendo que, quando a nossa casa está a arder, devemos todos dar uma mão para ajudar a extinguir as chamas.

Marcello Pera

In Porque devemos chamar-nos cristãos, ed. Frente e Verso

[Apresentação a partir do texto do SNPC: http://www.snpcultura.org/porque_devemos_chamar_nos_cristaos.html]

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