O centenário da sua morte faz reemergir a figura do poeta e do cristão Charles Péguy (1873-1914). A presidente da associação francesa “L’Amitié Charles Péguy” dedica-se a relançar a sua leitura. Entrevista de Chantal Joly, publicada na página da Conferência dos Bispos de França.

Reduz-se muitas vezes Péguy ao poeta épico de uma França antiga, a um católico devoto. Que cristão era ele?

Temos dele visões muito parciais que se apoiam em determinados versos isolados dos seus escritos. Se eles forem lidos honestamente, sem “a priori”, rapidamente se percebe que ele pulveriza os rótulos.
Para a sua infelicidade, ele foi, com efeito, inclassificável. Na Igreja do seu tempo era um marginal. Recalcitrante à autoridade, não ia à missa, e como não era casado religiosamente, não tinha acesso aos sacramentos. Ele sofria por isso, compensando através da oração, especialmente a Maria.
Completamente impregnado pela leitura do Evangelho, do catecismo e do breviário [Liturgia das Horas], alimentou a sua obra de textos litúrgicos. Tinha uma vida de fé muito intensa.

Que mensagem pode ele trazer aos cristãos de hoje?

O seu pensamento religioso influenciou teólogos de renome, como Jean Danièlou, Henri de Lubac ou ainda Hans Urs von Balthasar. Muitas das suas intuições, que pareciam novas para o seu tempo, fazem agora parte do nosso património: o Deus de misericórdia que vence sobre o Deus justiceiro, o laço entre salvação e liberdade, etc.
Os seus livros alimentam também a vida interior de muitas pessoas. Algumas disseram-me mesmo que Péguy as ajudou a recomeçar após uma provação. É pena que ele seja tão pouco explorado na catequese ou no ensino católico. A Igreja não deve desconfiar desses grandes escritores que são Péguy e Bernanos: eles são um dom para ela.

E para si, que percorreu toda a sua obra, o que é que a toca mais?

Estou impressionada pelo seu génio: ele tinha uma capacidade de pensamento e de criação fora do comum. Descobri-o, há mais de vinte anos, graças a Bernanos, que falava dele como de um modelo. Começando pelos seus escritos de juventude, textos curtos, percucientes e deveras cheios de controvérsias com os socialistas do seu tempo, fui seduzida pela sua lucidez profética.
Ele percebeu as derrapagens que conduziram aos totalitarismos do séc. XX. Ele defendia, por exemplo, o ensino para a aprendizagem da justiça, mais do que da luta de classes. Hoje, continuo a admirar o lado monumental da sua obra e da sua coerência entre os seus ideais de justiça social, a sua fé e a sua poesia. Ele exprima-os numa linguagem que desejava oferecer-se ao maior número, uma linguagem para mim fraterna.

Uma palavra sobre a sua «pequena esperança», sem dúvida a sua citação mais célebre.

É preciso saber que é mais do que uma imagem. Péguy ocupou-se muito dos seus filhos, e como pai esperou o melhor para eles. Dessa maneira ele compreendeu a esperança que Deus coloca no ser humano. Na medida em que enfrentou na sua vida numerosas dificuldades, celebrou este impulso vital que não tem nada a ver com um otimismo beato. Também neste caso é preciso ler os textos na sua integralidade, em que ele evoca o cortejo de santos e o necessário progredir do ser humano. Em “Les tapisseries”, os seus versos sucedem-se como passos numa estrada.

Trad./edição: Rui Jorge Martins | SNPC

 

A fé que mais amo, diz Deus, é a esperança.

A pequena esperança avança no meio das duas irmãs mais velhas e nem sequer se repara nela.

No caminho da salvação, no caminho carnal, no caminho áspero da salvação, no percurso interminável, no percurso, entre as duas irmãs a pequena esperança Avança.

No meio das irmãs mais velhas!

A que é casada.

E a que é mãe.

E só se dá atenção, o povo cristão só dá atenção às duas irmãs mais velhas.

A primeira e a última.

Que acodem ao urgente.

Ao tempo de agora.

Ao momentâneo instante que passa.

O povo cristão só vê as duas irmãs mais velhas, não tem olhos senão para as duas irmãs mais velhas.

A que está à direita e a que está à esquerda.

E a bem dizer não vê a que está no meio.

A pequena, a que ainda anda na escola.

E que caminha.

Perdida nas saias das irmãs.

E facilmente crê que são as duas grandes que levam a pequena pela mão.

No meio.

Entre elas duas.

Para a fazerem percorrer esse caminho áspero da salvação.

Cegos que pelo contrário não vêem

Que é ela que no meio arrasta as irmãs mais velhas!

E que sem ela elas nada seriam.

Senão duas mulheres já idosas.

Duas mulheres de certa idade.

Amachucadas pela vida.

É ela, essa miúda, que tudo arrasta.

Porque a Fé só vê o que é.

E ela, ela vê o que será.

A Caridade só ama o que é.

E ela, ela ama o que será.

Charles Péguy (1873-1914)

Pastoral da Cultura