“Uma coisa só o magoava: começava a ficar velho e tinha que deixar a terra lá onde ela estava. É uma injustiça de Deus: depois de ter gasto a vida a comprar os seus bens, quando se consegue possuí-los – e bem se gostaria de ter ainda mais – é preciso deixá-los! E assim, quando lhe disseram que era tempo de deixar as suas coisas e pensar na alma, saiu para o pátio como louco, cambaleando; pôs-se a matar à bengalada os seus patos e os seus perús e gritava: – ‘Coisas minhas, venham comigo!’”
Giovanni Verga, La roba [Os bens]
O progresso não é um conjunto de vetores orientados todos na mesma direção. Em muitas dimensões da vida, a modernidade trouxe grandes melhoramentos e desenvolvimento; não foi assim com a arte de envelhecer e de morrer que está a passar por rápida e forte marcha atrás. A fase final do ‘ciclo de Jacob’ está tingida pela dor e pela morte, principalmente, de mulheres.
Depois da triste história de Dina, surge a morte de Débora, “ama de Rebeca” (35,8), sepultada debaixo do “Carvalho do Pranto”. E depois a morte de Raquel, a mulher que Jacob amava. Morreu de parto, ao dar à luz o seu segundo filho: “… teve um parto bastante difícil. Ao vê-la assim em dificuldades, a parteira disse-lhe: “Não tenhas medo! Tens aqui outro rapaz!”. “Antes de dar o último suspiro Raquel deu ao seu filho o nome de ‘Benoni’ [filho da minha dor]; mas o pai mudou-lhe o nome para ‘Benjamim’ [filho da prosperidade]” (35,18). Jacob continua a mudar de terra, peregrino e exilado, através da terra prometida. É ainda como caminhante que dá sepultura a Raquel junto de Belém (a ‘casa do pão’), ao longo do caminho que o levava de novo à terra do seu pai Isaac (Hebron). Sobre a sepultura de Raquel erigiu, também ele, uma estela, marcando deste modo para sempre a sua vida e aquela terra.
As mulheres continuam a gerar-nos nas dores de parto; e por maiores que sejam os progressos da medicina, o parto é sempre um momento crucial da vida das mães: confere-lhes valor e dignidade únicos no universo. Ainda demasiadas são as mulheres que morrem no parto (cerca de mil por dia), mesmo em países tecnologicamente mais avançados. Por vezes, nestes encontros de morte e vida repete-se a alquimia de Raquel: o menino ‘filho da dor’ e da morte recebe um nome novo e transforma-se em ‘filho da prosperidade” e da vida. Nestas transformações e autênticas ressurreições é geralmente o pai que dá ao filho o nome novo; e depois revê para sempre nele, como em cada outro filho (e mais ainda), a figura da mãe-esposa.
Por fim, morre Isaac também: “Jacob foi ver depois o seu pai Isaac, em Mambré. Antes de Isaac, já Abraão alí tinha vivido também. Isaac tinha cento e oitenta anos quando morreu. Viveu feliz até essa idade avançada (velho e saciado de dias). Os seus filhos Esaú e Jacob deram-lhe sepultura” (35,27-29). A morte de Isaac imita quase literalmente a de seu pai Abraão: “… viveu cento e setenta e cinco anos. Morreu feliz numa idade já bastante avançada (velho e saciado de dias), e foi juntar-se aos seus antepassados. Os seus filhos Isaac e Ismael deram-lhe sepultura na gruta de Macpela” (25,7-9). Abraão e Isaac morrem depois de uma longuíssima vida, ‘saciados de dias’, ‘com bonitos cabelos brancos’; e a morte do pai é ocasião de encontro entre filhos que tinham estado em conflito – esplêndida cena que de vez em quando se repete também nas nossas histórias quotidianas. Em ambas estas belas mortes encontramos o verbo ‘expirar’: morrendo restituímos aquele ‘sopro vital’ que o Adam tinha recebido no momento da criação e que cada homem recebe ao vir ao mundo. A vida não é produto que se possa manufaturar; é aquele grande mistério que está entre um primeiro respiro doado e um último respiro redoado.
A contemplação da bela morte dos Patriarcas não deve fazer-nos esquecer que nem todas as mortes – dantes como agora – são boas. No caso de crianças e jovens a morte chega como um ladrão, um inimigo que vem buscar o que não é seu. Mas tantas outras mortes existem – a maior parte – que poderiam ser boas; bastaria que tivéssemos recursos espirituais e morais para as viver bem. As religiões, a piedade popular, a ética e a espiritualidade da família, muitas civilizações tradicionais não ocidentais e até mesmo as grandes ideologias do séc. XX, deram origem a uma boa gestão da dor e da morte, porque elaboraram uma cultura do envelhecimento e do fim da vida muito mais sustentável que a que se está afirmando na nossa civilização dos consumos. Muitos dos velhos de ontem (mesmo se nem todos) morreram ‘saciados de dias’ e com ‘bonitos cabelos brancos’; como o meu avô Domenico, por exemplo.
Hoje, porém, compreendendo-se cada vez menos – e por isso não se aceitando – a idade do declínio do corpo e da vida, criam-se como sucedâneos ‘mercados da juventude’ cada vez mais na moda; esquece-se então que, por mais que a adiemos com dispendiosos tratamentos de estética, ginásio e percursos de manutenção exigentes, a idade do pôr do sol há de inexoravelmente chegar. O encontro não preparado com a decadência física é devastador, porque a morte é percebida como o morrer de tudo: nós mesmos, os amores, ‘as coisas’, o passado, o mundo. Não dando valor e não amando a velhice nossa e dos outros, não damos valor e não amamos os velhos que se tornaram assim uma grande ‘periferia’ do nosso tempo. E com isso a sociedade e a economia delapidam um património de grande valor e valores.
Temos vital necessidade de novos carismas que nos ensinem de novo a arte da saciedade dos dias e dos bonitos cabelos brancos, que tenham olhos para ver diversamente esta grande pobreza do nosso tempo, que a amem. Sem uma dócil reconciliação com a velhice, paradoxalmente ela acaba por dominar até os anos da juventude que escorre veloz com a obsessão de que vai acabar. Pelo contrário, se soubermos amar e acolher a velhice, ela põe em evidência até as suas delicadas, escondidas mas não pequenas belezas. A beleza sempre foi algo de espiritual, muito mais ética do que estética. Conheci Rita Levi Montalcini, Madre Teresa, Nelson Mandela quando estavam já na idade avançada e sempre me pareceram belíssimos, não menos belos que os meus sobrinhos ou que os jovens da minha universidade.
É assim uma enorme injustiça o facto de hoje demasiados idosos passarem os últimos anos de suas vidas sem, à sua volta, netos e crianças essenciais para tornar alegre cada velhice e belas as brancas dos nossos cabelos. Uma cultura que sempre mais obriga os seus idosos a morrerem sós ou em ‘companhia’ de outros velhos sós é uma cultura oca e profundamente ingrata. Hoje em dia, na Itália, 62.5% das mulheres idosas vivem sozinhas (face a 30% dos homens); um dado muito grave, sobretudo quando se pensa que estas mulheres dispenderam os melhores anos da sua vida cuidando dos seus velhos, renunciando (mais ou menos livremente) a diversões e, em muitos casos, a bem sucedidas carreiras profissionais. Uma geração inteira de mulheres está a morrer com um enorme ‘crédito de cuidados’: os que recebem na sua velhice são infinitamente menores que os que doaram quando eram jovens. No futuro haveremos de encontrar um novo equilíbrio entre gerações e entre os dois sexos (melhor que o de hoje, esperemos), e os créditos serão reduzidos; mas isso nada tira da dor-injusta de uma geração inteira de verdadeiras ‘exiladas do cuidado’.
A felicidade e a sabedoria de uma civilização medem-se sobretudo por como ela sabe envelhecer e sabe morrer. Quando um jovem vê um dos pais ou a avó morrer mal, é a sua própria vida que fica triste, ainda que disso se não aperceba. Um velho que consegue envelhecer e morre com ‘bonitos cabelos brancos’ realiza grande ato de esperança e amor pelos jovens, pelos seus filhos, por toda a gente, afinal. Poderá também suceder que um justo envelheça e morra mal e desesperado; e que continue a ser justo. Faz parte da vida boa lutar ‘a noite inteira’ e arrancar, por fim, a bênção ao anjo da morte.
Os ‘belos cabelos brancos’ e a ‘saciedade de dias’ de Abraão e Isaac (e depois Jacob: 49,33) são impressionantes e comovedores, tanto mais se pensarmos que naquela fase histórica para o povo de Israel a vida para além da morte era um conceito muito diluído, vago e escuro (o Sheol). O Deus da Aliança e da Promessa era o “Deus dos vivos”, não o deus dos mortos. Para eles JHWH agia e falava na terra. Para muitos personagens bíblicos a dor pela morte próxima é sobretudo a que nasce do pensamento de não mais poder ver o Senhor, que conheciam como o Senhor da vida, que encontravam, ouviam e seguiam vivendo no mundo. A fé bíblica é encontro, aliança, seguimento, história. A experiência religiosa é um facto histórico, dá-se no tempo e no espaço, é uma dimensão fundamental da vida. Foi esta, e não outra, a fé que nos transmitiram Abraão, Isaac e Jacob. Neles se encontra a raiz profunda da verdadeira laicidade: o lugar da fé é a história, a terra prometida é a nossa terra. Enquanto houver história e terra, aquela mesma voz que os encontrou poderá encontrar-nos a nós, surpreendendo-nos: “Na verdade JHWH está neste lugar e eu não sabia” (28,16). É esta a maior herança que nos legaram.
Depois de sepultar seu pai Isaac com o irmão Esaú, “Jacob instalou-se na terra de Canaã, onde seu pai tinha habitado algum tempo (como estrangeiro)” (37,1).
Fonte: Luigino Bruni, Avvenire, 8.6.2014. Trad. P. António Bacelar, snpcultura.org