A multiplicidade de opiniões e tendências, o predomínio da economia e a influência da publicidade têm contribuído para remeter o cristianismo para a periferia, mas este movimento, nem sempre fácil de aceitar na Igreja, pode constituir uma oportunidade, considera o responsável pelos Jesuítas em Portugal, padre José Frazão Correia.
A perspetiva foi transmitida durante a conferência “O valor do que não tem valor no caminho espiritual”, que a comunidade de monjas dominicanas do mosteiro do Lumiar, em Lisboa, organizou este sábado.
«Precisaríamos de descrever a situação em que vivemos para perceber como cuidar da alma, do espírito íntimo, onde se decide a verdade daquilo que somos e, talvez, para descobrir passagens inéditas de Deus entre nós», apontou o religioso, antes de apresentar as principais orientações que caracterizam a sociedade e a Igreja.
Hoje «valoriza-se a pluralidade democrática, o que é ótimo mas difícil» porque implica gerir a «contradição», quer no espaço público quer na vida pessoal: «A nossa própria consciência é um parlamento», «somos como Fernando Pessoa, um conjunto de heterónimos» que «convivem todos na mesma pessoa».
Por outro lado, prosseguiu, assiste-se à predominância da economia, com o facto curioso de «a linguagem dos mercados ser a da fé», falando-se do «deus dos mercados» que é «caprichoso, imprevisível» e «gere um universo de reféns».
«Tiraram-nos quatro feriados para o país avançar; estamos mais produtivos? Como é que o estado tutela o tempo livre?», perguntou, para a seguir salientar: «A questão do tempo não é dos católicos ou dos ateus, mas da alma humana. O tempo livre, o ócio, o tempo para a família. Como é possível educar bem uma criança trabalhando das 7 às 22h?»
A vida em sociedade é também marcada pela publicidade, «um deus que promete mas não garante»: «Facilmente passamos da histeria [da promessa] à depressão [da realidade]».
A influência do “marketing” estende-se também à Igreja, com a «tentação de transformar a transmissão da fé numa questão publicitária»: «Às vezes, o nosso testemunho é pouco mais do que a venda de um produto», assinalou o padre José Frazão Correia.
O provincial da Companhia de Jesus sustenta que a «linguagem eclesial tende a ser pesada» e nem sempre coerente com os comportamentos: «Temos palavras muito fortes mas faltam práticas que realizem aquilo que elas pretendem».
Termos como «verdade, liberdade e vida fazem todo o sentido, mas podem por vezes tornar-se demasiado pesadas», «e o pior seria se eles perdessem vida e se tornassem irrelevantes», pelo que o religioso sugeriu «algum pudor» na sua utilização.
A essência do cristianismo, vincou, não se encontra no refúgio, mas na abertura: «Não seremos mais espirituais se nos apartarmos mais do mundo; há cristãos que se apartam do mundo, como os monges e monjas de clausura; mas é um apartar com o mundo, rezam com o mundo».
«Não seremos mais espirituais se nos enclausurarmos nos lugares de proteção de nós próprios», mas, ao mesmo tempo, são necessários «mais espaço de respiro para o espírito; não alienantes, mas que permitam cultivar as necessidades da alma, que possam fazer intuir, pressentir, entrever as passagens da graça».
Perante este contexto social e espiritual, qual é hoje o lugar do cristão na sociedade? «Talvez nos convenha perceber que o nosso espírito é chamado a viver a instabilidade da fronteira».
«Este ser relegado para a fronteira», como tem acontecido com o cristianismo, «causa grande desconforto eclesial e pessoal», embora tenha virtualidades: «Pode trazer-nos grande consolação espiritual», «pode fazer nascer uma criatividade de que, neste momento, não conhecemos os frutos».
«Redescobrir que o nosso lugar como cristãos, o lugar que nos convém», embora «custe muito assumir», «é a fronteira»; «que o lugar mais cristão não é o centro mas a periferia», o lugar «da impureza», o lugar que «Jesus escolheu para si», frisou o padre José Frazão Correia, acrescentando que esta atitude requer «nova sensibilidade, entendimento» e «práticas».
À simplicidade de meios corresponde a humildade de objetivos: «Não termos uma grande pretensão», mas sermos «pequenos pontífices, pequenas pontes que fazem encontrar pessoas e horizontes que à partida se excluiriam», «cultivando uma mística do quotidiano, não uma mística exótica e esotérica», sendo «pequenos instrumentos da graça».
Fonte: Rui Jorge Martins | SNPC, 09.11.2014