Temos de ousar interpretar o caminho da família, e da nossa família, em chave de bem-aventurança. Os anos passam, e com eles os acontecimentos, as estações diferenciadas, as múltiplas etapas que compõem a vida. Vamos sendo os mesmos e, simultaneamente, tornámo-nos outros. Gerimos um património afetivo feito de alegrias e esperanças, mas também de algumas feridas e embaraços. Pode até dar-se o caso de sentirmos que o edifício de uma inteira vida ameaça agora sucumbir. É preciso, por isso, que as bem-aventuranças venham em nosso socorro. A bem-aventurança experimenta-se quando permitimos que a força da graça reconfigure a fragilidade da vida. Ela tem a mesma natureza do amor, isto é, é dialógica, dual, tensional. É fruto da relação. É obra de uma aprendizagem espiritual permanente.
Bem-aventuradas as famílias que entendem a sua missão como uma arte de hospitalidade
O amor é uma forma incondicional de hospitalidade. Na família experimentámos humildemente que não somos donos de nada nem de ninguém: somos testemunhas, elos de uma corrente, companheiros. Acolhemo-nos na gratuidade e só aí. Bem-aventurada a família que não tem a reivindicação de posse que, muitas vezes, é a do amor exageradamente narcísico. Os seus laços são os de uma intimidade que se pode experimentar, mas não dominar; que se pode escutar profundamente, mas sem deter. A ansiedade de dominar é um equívoco. A companhia é outra coisa: é aceitar que somos uns para os outros passagem, epifania, revelação que, na prática do amor, se aprofunda e fortalece. Aceitar, aceitar – que exercício tão difícil, mas absolutamente decisivo para a edificação da família. Aceitar a noite e o nada, o silêncio e a demora, aceitar a graça e fraqueza, a diferenciação e o desapego. E de tudo fazer caminho, na esperança, sem nunca desistir de ninguém.
Tomemos uma imagem que nos é oferecida por um autor contemporâneo, Luciano De Crescenzo: «Somos anjos de uma asa só. Temos de permanecer abraçados para poder voar». Nesta sugestiva imagem há dois princípios que sobressaem: o princípio da incompletude, cada um de nós possui uma asa apenas; e o princípio da comunhão, que garante que abraçados podemos voar. O que é a experiência de uma família? É a maturada e criativa conjugação destes dois princípios. Com cada homem e cada mulher vem ao mundo algo de novo que nunca antes existiu, algo de inaugural, mas é na construção da reciprocidade que de forma consistente o podemos descobrir. O “eu” tem imperiosa necessidade de ser olhado amorosamente por um outro, de ser acolhido para aventurar-se no risco de ser. Para haver um “eu” tem de existir um “tu”. A vida não se resolve isoladamente. Sozinhos, ficamos inclusive aquém de nós próprios, pois cada um de nós constrói-se no encontro e na relação. Precisamos desse reconhecimento mútuo: um reconhecimento não fundado no confronto ou na competição, mas na gratuidade e no afeto.
Do princípio da incompletude transitamos assim, muito naturalmente, para o princípio da comunhão: «abraçados podemos voar». A comunhão supõe certamente decisão, esforço e caminho. Porém, não é propriamente de uma conquista que se trata, mas do espanto inesgotável e comum, da abertura, da dádiva, da radical hospitalidade que um oferece ao outro. Isso que surge de forma tão clara nos versos seguintes de Rainer Maria Rilke: «Se me tapares os olhos: ainda poderei ver-te./ Se me tapares os ouvidos: ainda poderei ouvir-te./ E mesmo sem pés poderei ir para ti./ E mesmo sem boca poderei invocar-te». O fundamental concretiza-se numa gratuidade infatigável, numa geografia sem condições nem reservas. O amor não se explica: implica-se. Acontece sem porquês. É uma voluntária hipoteca, um sigilo de sangue, um entrelaça-mento vital. Apenas apreende o amor aquele que sabe, por experiência, o que significa amar. Os que se amam tornam-se cúmplices. E cúmplices não apenas uns dos outros. Tornam-se cúmplices de Deus.
Bem-aventuradas as famílias que diariamente combatem o analfabetismo dos afetos
No célebre filme “Cenas da vida conjugal”, de Ingmar Bergman, há uma personagem que diz a dada altura: «Vou revelar-te uma coisa talvez trivial. Em matéria de sentimentos somos analfabetos. E o mais triste é que isso não é verdade apenas para ti ou para mim, mas para quase todos. Aprendemos o que há a aprender sobre o corpo humano, sobre a agricultura no fim do mundo, sobre o pi grego ou como diabo se chama… Mas ninguém se dá conta de que deveríamos aprender primeiro alguma coisa sobre nós próprios e a nossa alma…». Bem-aventurada a família que se propõe combater diariamente este analfabetismo. Os membros de uma família têm de tornar-se naturalmente (e ainda mais, sobrenaturalmente) grandes artesãos do afeto, num amor que nos aceita por inteiro, que abraça o que somos e o que não somos; o que nós fomos e o que nos tornámos. Num amor que ama as nossas possibilidades infinitas e indefinidas; os nossos desabrochares esperançosos e as nossas quedas frustrantes; as nossas liberdades insensatas e a nossa timidez hesitante. Num amor que é, por si, uma arte da confiança que continuamente relança as histórias.
Bem-aventuradas as famílias que compreendem a importância do inútil
Porque é o inútil tão importante? Vivemos num mundo em que tudo precisa de ser caucionado por uma qualquer utilidade e isso desvia-nos de um viver gratuito, disponível e autêntico. Só a inutilidade nos dá acesso à polifonia da vida, na sua variedade, nos seus contrastes, na sua realidade densa, na sua surpresa e na sua inteireza. “Foi o tempo que perdeste com a tua rosa, que tornou a tua rosa tão importante para ti”- explicava Saint-Exupéry. Quer dizer: temos de aceitar “perder” para que a relação valha. E perder é mesmo perder: não só tempo, mas também representações prévias, aspirações, projetos, utilidade, vida. O objetivo é poder alcançar aquela plena liberdade da definição que Montaigne propõe: «Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respon-dendo: “Porque era ele. Porque era eu”». As relações familiares não podem reduzir-se à gestão do útil, à gestão do que se vê de fora, dominadas por um pragmatismo epidérmico. É preciso perceber como a inutilidade abre clareiras favoráveis à revelação, à palavra, ao verdadeiro conhecimento, ao encontro.
Bem-aventuradas as famílias que cultivam uma arte da lentidão
Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados. À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num “open space”, sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados. Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver.
Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno. Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.
Bem-aventuradas as famílias que não deitam fora a caixa dos brinquedos
Acontece, por vezes, que, à medida que os filhos crescem, desaparece das famílias a caixa dos brinquedos. As casas tornam-se (um pouco) mais ordenadas, aderem a uma rotina perfeita que durante anos não tiveram, numa respeitabilidade estável, segura de si. Principia-se então uma estação de tréguas, sem as surpresas que desesperavam: a chuva de peças órfãs dos seus jogos, os bonecos a ressurgirem onde absolutamente não deviam, o inofensivo módulo encontrado pelo canalizador como única explicação para a monumental avaria. Primeiro respira-se de alívio, portanto. Mas depois, estranhamente, nem tanto. Pois há uma hora em que se percebe a falta que nos faz a caixa dos brinquedos.
É nessa caixa que se encontram os símbolos, as brincadeiras, os risos distendidos, as férias em família, os aniversários, os jogos intermináveis à volta da mesa com velhos e novos contagiados pelo mesmo entusiasmo, a contemplação carinhosa sem nenhuma finalidade. É nessa caixa que estão as histórias disparatadas e sábias que contamos pela vida fora, aí se conservam os odores, os registos, as palavras de uma canção que cantámos muitas vezes e depois esquecemos, a primeira bicicleta, os livros que nos ofereceram quando ainda não sabíamos ler, os cromos, o silêncio da intimidade, a viagem à aldeia, as conversas à janela voltados para a noite. Nessa caixa está a arte de fazer tempo, de perdê-lo para que se torne mais nosso, permitindo a imaginação, o sentido lúdico, a alegria. A caixa dos brinquedos não serve para nada, e por isso dá-
-nos razões para viver.
Não nos damos conta do empobrecimento que representa, mas muitos dos conflitos dolorosos que transportamos mais tarde, vida fora, têm aí a sua origem. Lembro-me de uma história que uma querida amiga me contou. O seu pai era juiz em Itália. Um homem severo e absorto, sem tempo a desperdiçar, sem grande vontade de levantar os olhos do seu importante mundo, ainda menos para escutar as minu-dências por que passavam os miúdos. Ela cresceu, formou–se e, durante os primeiros anos, chegou a trabalhar como secretária do pai. Essa proximidade em nada alterou o quadro que conhecia: continuavam dois estranhos, com uma relação puramente formal, e um mundo submerso de coisas por dizer. Ela conta que um dia fizeram uma viagem de trabalho a uma das ilhas gregas. Foram de barco, e podemos imaginar os longos tempos de travessia. De madrugada, porém, sobressaltada, ela percebe que o pai está no seu camarote, a acordá-la. Fixa-o sem perceber bem o que se está a passar. E ele diz-lhe: «Vem ver o sol que está a nascer. É enorme, enorme. Vem depressa. Vais gostar. Vem». Muitos anos depois, o pai já tinha morrido, esta história tinha-se passado há décadas, a minha amiga confiava–me: «Se ele tivesse feito pelo menos mais uma coisa destas, pelo menos mais uma, eu ter-lhe-ia perdoado tudo».
Bem-aventuradas as famílias que arriscam fazer um bom uso das crises
Atravessar etapas de crise não é necessariamente mau: permite-nos um olhar a que ainda não havíamos chegado, permite-nos escutar não apenas a vida aparente, mas a insatisfação, a sede de verdade e de sentido, e passar a assumir uma condição mais ativa e assumida. Mudar não significa tornar-se outro, mas fazer uma experiência mais autêntica de si. No fundo, só mudamos quando nos encontramos. Não nos escutarmos, até ao fim, isso sim é desperdiçar uma preciosa ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à existência. Talvez precisemos descobrir que, no decurso do nosso caminho, os grandes ciclos de interrogação, a intensificação da procura, os tempos de impasse, as experiências de crise podem representar verdadeiras oportunidades. Quanto mais conscientes dos nossos entraves, limites e contradições, mas também das nossas forças e capacidades, tanto mais podemos investir criativamente no sentido da nossa identidade. Isso implica uma mudança de ponto de vista sobre nós próprios e o mundo, e advém daí naturalmente uma instabilidade face a modelos que se tinham por adquiridos. Os partos indolores são uma mistificação. Quem tem de nascer, prepare-se para esbracejar.
Mas há um momento em que aprendemos que vale mais prestar atenção àquilo que em nós está a germinar, num lento e invisível (e inaudível) processo de gestação, do que àquilo que perdemos.
Em 1999, uma tempestade varreu drasticamente a Europa. No rastro de desolação, estima-se que terão ficado tombadas cerca de trezentos milhões de árvores. Em França, nas semanas que se seguiram, os gabinetes governamentais elaboraram aprofundados programas de reflorestação, procurando ao mesmo tempo tirar partido do acidente, pois a floresta seria por eles reconstruída com uma racionalidade mais adequada. Mas quando passaram ao terreno, os engenheiros florestais aperceberam-se de que a floresta tinha começado a regeneração mais rapidamente do que supunham. E inclusive, contrariando os planos técnicos, a floresta havia encontrado configurações novas, muito mais vantajosas do que aquelas oficiadas pela abstrata geometria dos gabinetes.
Bem-aventuradas as famílias que dizem de si mesmas: “somos um laboratório para a alegria”
Tolstoi começa o seu romance “Anna Karenina” dizendo que «Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira». A felicidade, porém, é tão singular como o sofrimento. Se o modo de chorar é pessoalíssimo, também o é o modo de rir. Diz-nos Jesus no Evangelho de S. João: «Eu quero que a alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa» (Jo 15,11). E: «Ninguém vos poderá roubar a vossa alegria» (Jo 16,22). Há, portanto, uma alegria que nada nem ninguém nos pode tirar, e que constitui o horizonte da nossa vida. É fundamental que a família coloque os olhos no horizonte e sinta que é para a alegria que está a ser chamada. É para a roda dos eleitos. E, por isso, desloca infatigavelmente o seu coração do peso da sombra para a leveza da luz. Na verdade, somos atravessados, somos conduzidos, somos levados pela mão de uma promessa, e essa promessa é a alegria. A alegria é sempre um dom. A alegria nasce quando eu aceito construir a minha vida numa cultura de hospitalidade. Se insonorizo o meu espaço vital, a alegria não me visita.
Em vez de crescermos na severidade, na intransigência, na indiferença, no sarcasmo, na maledicência, no lamento, caminhemos esperançosamente no sentido contrário. Cresçamos na simplicidade, na gratidão, no despojamento e na confiança. A alegria tem a ver com uma essencialidade que só na pobreza espiritual se pode acolher. Bem-aventuradas as famílias que dizem de si mesmas: «somos um laboratório para a alegria»; «somos uma escola do sorriso»; «somos um ateliê para a esperança»; «somos uma fábrica para o abraço e para a dança».
Bem-aventuradas as famílias que vivem no aberto do mundo e de Deus
O tempo de Deus é um tempo aberto. E o aberto o que é? É aceitar que o que vemos neste momento é apenas uma etapa e uma estação. Amar é também ouvir aquilo que é novo a cada momento, acompanhar o fluxo do mistério do tempo. Não tenhamos dúvidas: estamos e continuaremos a estar rodeados de perguntas. Nós próprios somos uma pergunta. Aquilo que o teólogo S. Justino expressava assim, há tantos séculos: «Magna quaestio factus sum me». «Tornei-me para mim mesmo uma grande pergunta!» A família é hoje também uma pergunta. Precisaremos talvez trocar o nosso conhecimento muito assertivo, dispondo-nos a aprender, ouvindo, tentando estabelecer o pacto, a aliança, mas nunca a partir de teorias fechadas. Temos de viver o aberto, a transformação e a abertura permanente. Só a reversibilidade nos dá a experiência profunda da salvação. Bem-aventuradas as famílias que sabem que o tempo é uma arte, uma recriação pascal.
Ser é habitar, em criativa continuação, o seu próprio inacabado e o do mundo. O inacabado liga-se, é verdade, com o vocabulário da vulnerabilidade, mas também (e eu diria, sobretudo) com a experiência de reversibilidade e de reciprocidade. A vida de cada um de nós não se basta a si mesma: precisaremos sempre do olhar do outro. A vida só por intermitências se resolve individualmente, pois o seu sentido só se alcança na partilha e no dom.
Este texto integra o número 20 do “Observatório da Cultura” (novembro 2013).
José Tolentino Mendonça
Pontifícia Universidade Católica-Minas, Belo Horizonte, Brasil, 20.7.2013
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